Revista Petro & Química
Edição 361 • 2015

Clique na capa da revista para ler a edição na íntegra
Por que acidentes (ainda) acontecem?
FPSO Cidade de São Mateus: explosão na casa de bombas resultou em nove mortes e a docagem da plataforma
 
Entender a dinâmica e a complexidade dos sistemas é um dos fatores mais importantes para evitar catástrofes ¦ Flávio Bosco

De 2008 a 2013 a taxa de acidentes fatais ocorridos em atividades marítimas no Brasil demostrou uma impressionante queda. Enquanto a quantidade de horas de trabalho praticamente dobrou, o número de óbitos em sondas e plataformas caiu de oito para dois – o que equiparou a taxa brasileira aos índices internacionais medidos pela Oil & Gas Producers - OGP. Mas o acidente com o FPSO Cidade e São Mateus, em 11 de fevereiro, reverteu essa estatística. A plataforma contratada pela Petrobras, mas operada pela BW Offshore, estava com a documentação válida. Uma semana antes, a Agência Nacional do Petróleo decidiu que a Petrobras deveria reduzir a capacidade ociosa da plataforma – que tinha capacidade para processar 10 milhões de m³ de gás por dia, mas estava extraindo 2,2 milhões de m³ por dia nos campos de Camarupim e Camarupim Norte, na Bacia do Espírito Santo. Uma explosão na casa de bombas resultou em nove mortes e a docagem da plataforma.

Estatísticas sobre acidentes fatais, sozinhas, não têm se mostrado suficientes para revelar o nível de segurança operacional. Muito menos para diminuir a quantidade de acidentes. Paradas emergenciais do processo e princípios de incêndio podem apontar muito mais. O crescente índice de incidentes registrados em um levantamento preliminar elaborado pela ANP no final do ano passado já indicava a deterioração das condições de segurança operacional. Metade dos 837 incidentes registrados em plataformas de produção, de janeiro a novembro de 2014, se referem a paradas emergenciais – um aumento de 158% em relação ao número registrado em 2013. Problemas na geração de energia principal foi a segunda principal causa, com 182 notificações. Em sondas, a principal notificação foi a falha do blow out preventer - BOP, com 143 casos entre os 550 episódios registrados. Somados os episódios comunicados à ANP, é possível observar um aumento de 62,5% no número de incidentes – nos onze primeiros meses foram notificados 1.526 acidentes e quase acidentes, enquanto que em 2013 foram 939 e 944 em 2012. O número de óbitos manteve-se estável nesse período.

Acidentes são imprevisíveis. Numa atividade tão complexa – que reúne uma grande quantidade de sistemas altamente energizados e líquidos inflamáveis e gases combustíveis percorrendo dutos a altas pressões e temperaturas – os riscos crescem na mesma proporção que cresce a complexa dinâmica de dispositivos interagindo entre si. Não deixa de intrigar, no entanto, que, apesar de todos os avanços tecnológicos, eles continuem acontecendo. Uma das hipóteses seria o desconhecimento dos cenários de risco. O relatório da ANP aponta a ausência de procedimentos ou identificação inadequada das ações necessárias para a mitigação e prevenção de riscos como as principais causas de acidentes na indústria do petróleo. O panorama não é muito diferente do que ocorre em outros países. De acordo com o World Offshore Accident Databank - Woad – banco de dados elaborado pela DNV GL a partir de 6183 acidentes ocorridos entre 1970 e 2009 – 81% dos acidentes reportados com causas humanas têm a causa raiz em procedimentos inseguros ou inexistentes. 86% dos acidentes não tiveram causas humanas apontadas – isso não significa que causas humanas não estavam presentes, mas que faltou uma análise sistemática de identificação ou que houveram falhas organizacionais humanas.

 
O conhecimento dos cenários de risco passa necessariamente pela execução de uma ampla análise de riscos das atividades operacionais. Ocorre que nem sempre eles são tratados com a devida seriedade. Algumas vezes, nem mesmo as recomendações geradas nas análises de risco elaboradas na fase de projeto são efetivamente implementadas. Em outras, o problema está na falta de revisões periódicas. Mudanças realizadas quando a plataforma ou a refinaria já está operando podem gerar novos cenários de risco até então desconhecidos – um caso comum são equipamentos e sistemas dedicados a segurança que aumentam a complexidade da operação. “Se o processo de gestão de mudança não for tratado de forma adequada, aí sim, pode-se ter uma situação com enorme potencial de acidente, ou seja, uma situação de alto risco, cujo cenário de risco não foi sequer identificado”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Análise de Risco, Segurança de Processo e Confiabilidade, Luiz Fernando Oliveira.

O conceito de “ciclo de vida da segurança” – que considera todas as fases do ciclo de vida – precisa estar claro quando o assunto é segurança de processo. “?A integridade das instalações ainda está dependente de condições de manutenção, um processo um tanto ‘independente’ das diretrizes de segurança, e cujos backlogs, via-de-regra não inspiram ações corretivas incisivas, sendo tratados mais como algo ‘normal’, contra a qual nada se pode fazer” lembra Estellito Rangel Jr., chair do Petroleum and Chemical Industry Conference - PCIC BR (congresso sobre instalações elétricas nas indústrias de petróleo, gás e química organizado pelo Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos).

O estudo Out of Control, publicado em 2003 pelo Health and Safety Executive - HSE, do Reino Unido, mostrou que 44% dos acidentes causados por problemas no sistema de controle de instalações de processos ocorreram por falhas na especificação. Há, no entanto, um peso importante em outras partes do ciclo de vida das instalações: em 20% dos incidentes, a causa esteve relacionada a mudanças após o comissionamento. Ver os sistemas de forma mais dinâmica é também um fator importante para evitar acidentes. Em 15% dos casos investigados pelo HSE, o problema surgiu na fase de operação e manutenção.

Os históricos de acidentes estão repletos de exemplos causados por falhas no gerenciamento de mudanças. “Os engenheiros são pródigos na concepção de melhorias para otimização da eficiência da instalação, o que começa a ocorrer depois de algum tempo (em geral, não muito grande) de operação com o sistema inicialmente projetado. Em princípio, isso é bom, mas traz consigo a necessidade de grande cuidado pois muitas mudanças altamente bem-intencionadas têm sido responsáveis por inúmeros acidentes de grande porte. Daí a necessidade da adoção de procedimentos estritos para a gestão de mudanças, presentes em todos os sistemas de gestão de SMS, mas muitas vezes esquecidos na prática”, explica Luiz Fernando.

Está na hora de rever os procedimentos?

Identificar a origem dos acidentes nem sempre é uma tarefa fácil – muito menos que a falha tenha origem em não conformidade de projeto, montagem, inspeção, manutenção ou reparo – por conta da destruição provocada pelas explosões em catástrofes como a ocorrida no FPSO Cidade de São Mateus. Mas a investigação das causas, item básico para garantir a melhoria contínua, ainda esbarra na pouca disposição das empresas em divulgar as investigações internas – que classificam como assunto confidencial.

Falta no Brasil uma entidade independente para investigação de grandes acidentes industriais – semelhante ao americano Chemical Safety and Hazard Investigation Board - CSB, que tem independência para investigar as causas dos acidentes, mas sem mandato para punir. “Investigar acidentes exige profissionais muito experientes, com sólida formação técnica. Não basta ser alguém que trabalhe muito tempo na área. No livro O Que Houve de Errado? Casos de desastres em plantas de processo e como eles poderiam ter sido evitados, o consultor Trevor Kletz explica porque até mudanças na tubulação de vasos provocaram explosões após cuidadosa análise das consequências impostas ao processo pela aparentemente simples ‘mudança’. E dentre as consequências de profissionais sem a devida expertise participarem de análises de acidentes, temos os relatórios inconclusos, com pareceres esparsos como ‘uma faísca provocou a explosão’, sem identificar exatamente as causas. E sem identificar as causas, como implantar medidas corretivas para evitar novas ocorrências?” questiona Estellito.

Este ano a ANP irá revisar seu Sistema de Gestão de Segurança Operacional - SGSO. Sua primeira versão, publicada há oito anos, revolucionou a gestão da segurança operacional em exploração e produção offshore ao criar uma linha de base para os processos em instalações marítimas. A proposta colocada em consulta pública até 20 de abril, adota os instrumentos da Recomendação de Abrangência e da Notificação de Abrangência – que abrem a possibilidade dos fiscais da Agência lavrarem o auto de infração imediatamente, sem a concessão de um prazo para saneamento da não conformidade, nos casos em que os concessionários sejam reincidentes.

A Notificação de Abrangência possui escopo mais limitado, já que poderá se dirigir apenas à empresa concessionária onde a não conformidade foi identificada e independe de decisão definitiva da ANP. Já no caso da Recomendação de Abrangência, a expedição está condicionada a uma manifestação final da Agência sobre o tema, podendo alcançar todos os concessionários – neste caso, poderá indicar não só a recorrência de uma não conformidade, a ser verificada em outras unidades, como também dar publicidade a um entendimento firmado pela ANP. O objetivo é que essas recomendações de melhoria tenham efeitos semelhantes ao "Alertas de Segurança" adotados por outros países. Na prática, os resultados das auditorias realizadas pela Agência alcançam outras unidades – os recursos serão melhor empregados e as empresas são estimuladas a implementar aperfeiçoamentos em seus sistemas de gestão independentemente de terem passado por uma auditoria.

É preciso lembrar que nenhum guia ou framework, por si só, tem força para garantir a segurança operacional. Práticas adequadas de gestão podem reduzir os riscos. Para gerenciá-los adequadamente o modelo para gestão da segurança operacional deve estar adequado ao seu ambiente. O problema está na efetiva implementação dos procedimentos existentes. A responsabilidade, em primeiro lugar, cabe à alta administração da empresa – e, em seguida, da gerência operacional, incluindo a gerência de SMS. Se a empresa está certificada segundo a norma OHSAS 18000, a entidade certificadora também tem parte da responsabilidade. Em terceiro lugar estão os organismos reguladores – como a ANP, que tem por atribuição legal verificar o cumprimento do SGSO.

“A gestão de ativos é uma ferramenta que pode contribuir para a maior segurança das instalações, mas hoje como sua utilização tem sido limitada para conter custos, é necessário estabelecer requisitos mais rigorosos para evitar grandes acidentes, típicos do segmento de petróleo e gás, já que o alto número de acidentes e mortes denuncia que a segurança dos trabalhadores está comprometida”, finaliza Estellito.
Luiz Fernando: atenções para a gestão de mudanças
Estellito: necessidade de requisitos mais rigorosos
Lisboa: inovar não significa mais complexidade
 
Arte: Matheus
 
Em defesa da adoção de novas tecnologias, é preciso considerar que elas demandam adaptação, treinamento e amadurecimento – da mesma forma que as vantagens econômicas e funcionais, as paradas não-programadas e as perdas de produção devem ser ponderadas, principalmente quando a atualização é indispensável. “Inovar faz parte do processo de sobrevivência das empresas e inovação não significa necessariamente mais complexidade”, afirma o vice-presidente de Vendas da Flir (fornecedora de detectores de gases e câmaras térmicas) para a América Latina, Fernando Lisboa.

Entre as exigências feitas pelo Ministério do Trabalho e Emprego para que o FPSO Cidade de São Mateus volte a operar, estão a necessidade de melhorias em sistemas elétricos em espaços confinados; utilização de vasos e caldeiras para a extração de gás e a criação de medidas preventivas para o controle de vazamentos, derramamentos, incêndios e explosões. Nessas atmosferas explosivas, a utilização de detectores de gás é regida pela a norma NBR IEC 60079-29-2 – os requisitos de desempenho para os equipamentos de detecção de gás com estes objetivos são definidos na ABNT NBR IEC 60079-29-1. “Entretanto, a capacidade de desempenho por si só não pode assegurar que a utilização de tais equipamentos possa devidamente salvaguardar a vida ou a propriedade onde gases inflamáveis possam estar presentes. O nível de segurança obtido depende em grande parte da correta seleção, instalação, calibração e manutenção periódica dos equipamentos, juntamente com o conhecimento das limitações da técnica de detecção requerida. Isso não pode ser alcançado sem um gerenciamento de informações responsável. A verdade é que é um grande erro limitar o foco na detecção de gases apenas em áreas explosivas. O potencial de economia e minimização de poluição de meio ambiente está concentrado fora das áreas de explosão por várias ordens de magnitude”, explica Fernando Lisboa.

O diretor de Vendas da Leser (fornecedora de válvulas de segurança), Paulo Poffo, lembra que novas tecnologias precisam ser testadas e validadas para adquirir a credibilidade necessária para seu uso em larga escala. “Temos a tecnologia, equipamentos disponíveis e sabemos como aplicá-los. Não é possível garantia de 100%, mas acredito que muito se possa ainda avançar na aplicação das tecnologias existentes (atualizadas), especialmente em plantas mais antigas”.
Em julho de 2013, uma falha em uma válvula de oito polegadas instalada na linha de vapor de baixa pressão da Refinaria de Duque de Caxias feriu um operário. Menos de cinco meses depois, um novo acidente nessa mesma linha deixou outro operário ferido. A Petro & Química procurou saber da Petrobras quais foram os procedimentos estabelecidos pela Petrobras para apurar as causas e quais foram as conclusões. Recebeu uma resposta lacônica, que corrigia a informação do Sindicato dos Petroleiros de Duque de Caxias – de que não houve explosão, mas uma falha na válvula – e confirmava a criação de comissões de investigação e a adoção das recomendações – mas não informou quais foram as causas dos dois acidentes.

Até o momento de conclusão dessa reportagem, as investigações do acidente com o FPSO Cidade de São Mateus e do incêndio no Terminal da Ultracargo não haviam sido concluídas.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Clique na capa da revista para
ler a edição na íntegra

Todos os direitos reservados a Valete Editora Técnica Comercial Ltda. Tel.: (11) 2292-1838